segunda-feira, 31 de março de 2008

INTERIOR DA CASA DE CIGANOS - JEAN B. DEBRET 1816

SER CIGANO


Em pleno século XXI, permanece ainda por demais fascinante a cultura cigana.
Ao ocultar-se dos não ciganos, sobrevivem em um sistema completamente á parte da sociedade, e ao mesmo tempo inserida a mesma. Ocultar-se, muitas vezes significa sobreviver, resistir, deixar de lado preconceitos seculares.
Ciganos, nômades e sedentários, cultura ágrafa, provindos da Índia, apaixonados por suas crianças têm na família sua base estrutural, sua devoção a seus idosos que representam suas histórias vivas, hábeis comerciantes, artistas e músicos. É isto que se deve conter em um dicionário, quando procurarmos pelo significado da palavra “cigano” e não a de trapaceiro, ladrão e perigoso á sociedade.
Lembremos que se há um ou outro elemento errante como há em qualquer etnia, não se pode com isso designar todo um povo (etnia), se assim for todos nós de todas as etnias teríamos inúmeras denominações, isso é preconceito.
O dicionário Aurélio já corrigiu está situação, o que a autora de origem cigana Jordana Aristicth
[1], já agradeceu e mencionou em sua obra, e hoje retificado com a menção:


“Cigano indivíduo de um povo nômade, que tem um código ético próprio, vive de artesanato, de ler a sorte e se dedica a música, homem de vida incerta”.


Parte do Brasil este gesto digno, de Aurélio Buarque de Holanda e equipe. Outro fato é que a enciclopédia Delta Larouse de n° 4 de 1972, cita serem os clãs ciganos totalmente comandados pelas matriarcas, o que, porém está incerto, pois a cultura dos ciganos é patriarcal.

Uma parte da bibliografia cigana no Brasil, não é direcionado ao contexto historiográfico, não se comprometendo como plano de base, problematização, crítica do assunto, a história, as fontes e dados necessários às pesquisas, as obras que servem como fontes de consultas confiáveis são poucas, mas ninguém pode fazer são ensaios, pois nos faltam documentos e a maior parte da história é de origem de fontes orais e não documentos. Os ciganos foram esquecidos pela historiografia brasileira e seus estudos começaram tardiamente.
No Brasil houve quem dedicasse tempos de suas vidas ao estudo e entendimento da etnia cigana, o que chamamos de ciganólogos. O pioneiro deles, sem dúvida e não podemos deixar de referi-lo nesta pesquisa, é Melo Morais Filho, a segui-lo José Benedito de Oliveira China, João Dornas Filho, Adolpho Coelho, este último não nos apresenta um rigor científico e sim efeitos literários. O que temos em termos de pesquisas iniciais no Brasil, vindas diretas de ciganos, são informações anteriores á segunda metade do século XIX, informações estas orais de ciganos, que observaremos no decorrer do trabalho, Melo Morais Filho
[2] trabalhou com estas importantes fontes, mas com possibilidades de incerteza dos dados, pela parte dos ciganos, repito a historiografia os omitiu, e documentos em sua maioria são de preconceitos e expulsão o que será esclarecido mediante a pesquisa.
Hoje principalmente na Europa, observaremos a interdisciplinaridade atuando na reconstrução da história cigana, áreas estas atuando com as ciências sociais e humanas.
Há também inúmeros outros livros denominados sobre ciganos, mas que se refere ao mítico e ao sobrenatural, uma nova religiosidade cigana que cresce a cada dia no Brasil vivido por não ciganos, lembremos que ciganos não representam uma religião e sim uma etnia vivendo espalhada pelo mundo.
Ao abrir a porta desse vasto tema sem de modo algum esgotar nestas páginas todo o assunto, busca-se passar um olhar científico, a lembrança de um Brasil com veias de vários povos e culturas. As raízes brasileiras, tão mencionadas em “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freire, o índio, o ibérico e o negro, mas há também o espanhol, o judeu, o árabe, o cigano e outros, transformando em gotas de sangue a correr em nossas veias, criando inúmeras e diferentes faces nesta salada de miscigenação.
Conglomerados ciganos já existiam na Índia desde 1500 a.C. após inúmeras invasões dispersam-se para outros regiões, começa assim a diáspora cigana em 1000 d.C.
Sua religião original era outra certamente ligada ao hinduísmo, e perdida com o tempo, hoje cada cigano assimila a região do país onde vive, havia castas ciganas na Índia de parias locais, castas estas de apresentavam ofícios como domadores de animais, videntes, e forjador de metais.
Entre os séculos X e XI da era cristã, se subdividem em dois grupos: um para a Ásia Ocidental, Arábia, Turquia, Síria, Palestina e outro para o império Bizantino.
Chegam ao mundo Bizantino e na Europa no século XIV, já se encontra inúmeros relatos, narrativas, sobre viajantes do Oriente ao Ocidente que mencionam a estranha população sob tendas.
Passaram pela Grécia, Chipre, Rodes, Corfu, Negroponte. No século XV á XVI já estavam espalhados por Europa. Na Moldávia e Valáquia, hoje atual Romênia, foram escravizados em 1370. Em meados do século XIX, em 1885 cerca de 200.000 mil ciganos foram libertados da escravidão na Romênia.
Noticias de ciganos eram datadas chegando à Hungria (local do mundo onde a língua cigana é mais preservada
[3]), na Alemanha em 1417, 1422 na Bolonha e em 1427 estavam acampados em pontes de Paris, deixaram sinais de passagem na Rússia, Polônia, Inglaterra e Suécia no final do século XV, final da peregrinação na Europa. Uma das primeiras referências em Portugal, documental segura já data do século seguinte 1510, uma poesia de Gil Vicente “A FARÇA DAS CIGANAS”[4] estas primeiras notícias se misturam a tantas outras hostilidades da população portuguesa, o que se prorrogará por tempos junto a perseguições.
Segundo fontes documentais que serão mencionadas ao decorrer destas páginas, os primeiros ciganos oficializados a chegar ao Brasil, datam de 1574, degredados de Portugal, mas há estudiosos do assunto que acreditam que possivelmente com o descobridor, na frota de Cabral, os sete homens integrantes da capitania portuguesa vindos na viagem, homens de origem indiana, provavelmente seriam ciganos.
Mas é no final do século XVII é que vemos por total, os degredos de ciganos para o Brasil, chega o grupo denominado Kalons, ou seja, os primeiros ciganos a chegarem as Terras de Vera Cruz, o Brasil.
Em 1822 em diante, ou seja, da emancipação política chegam os ciganos do grupo Rom extra ibéricos, chegam já assimilados ao catolicismo.
No Brasil, essa etnia, os ciganos veneram N.S Aparecida, sua padroeira no país. A N.S. Lâmpadosa, a Santa Ana (Mãe de Maria) que chamavam carinhosamente de cigana velha e Sara Kali, padroeira de todos os ciganos do mundo, mas conhecida principalmente e cultuada pelos ciganos europeus, no Brasil o culto a Sara Kali se fortificou mais recentemente, celebrada em Saites Maries de La Mer na França nos dias 24 e 25 de Maio, onde acontece uma verdadeira peregrinação, ciganos de todo o mundo estão presentes.
Em Maio de 1997, o papa João Paulo II, beatificou o cigano Beato Ceferino Gimenez Malla (El Pelé).
Na Hungria os ciganos recitam uma antiga oração que fazem a virgem, esta oração é feita periodicamente:
“ Doce Deusa, daí-me saúde, Santa Deusa, daí-me felicidade e graça, para onde quer que eu vá; socorrei-me poderosa e imaculada, dos homens feios, para que eu siga nas estradas até ao lugar que destino; socorrei-me, Deusa; não me abandone, Deusa porque oro pelo amor de Deus.”
[5]

Neste percurso dos ciganos, de sua saída da Índia ao resto do mundo, há ainda hoje inúmeras outras hipóteses até mesmo entre os próprios ciganos, que em um mergulho de mitos, dizem se originar do Egito, o que Voltaire dizia serem descendentes dos sacerdotes da Deusa Ísis, misturados a seus adoradores, Vulcanius Boaventura em seu livro “Litteeris et Língua Gelarum et Ghotorum” (1967), diz os ciganos se originavam da Núbia, na África. Outros autores os consideram autênticos judeus, como o alemão Wagnseil, em 1700, sustentava a tese de semelhanças físicas o que não há nenhuma consistência, com certeza improvável. Jean Paul Clébert, em seu estudo aprova a origem indiana aos ciganos, pois encontrou semelhanças lingüísticas e raciais.
O cigano chamado Toti Steinberger, na época com 43 anos, em 1975 afirma serem os ciganos descendentes diretos da Rainha Nefertiti, a princesa egípcia (1475 á 1321 a.C), Steinberger representava os três clãns na Europa: Manuches, Rons e Sisti, Toti Steinberger se denominava l´der destes grupos, é e importante saber que não há reis nem rainhas na cultura cigana, Steinberger para expor tal informação ele se dirigiu ao Vaticano, com a finalidade de certa projeção particular de seu domínio e influência de seu povo com trailers onde Mercedes-Bens os puxavam com grande quantidade de ciganos dos grupos acima referidos.
Há algumas lendas também que tenta explicar o surgimento dos ciganos, uma delas seria que Caim, irmão de Abel, após matá-lo teria sido condenado por Deus a habitar sob tendas:
“(...) agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para da tua mão receber o sangue de teu irmão. Quando lavrares a terra não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra (...) Caim saiu da presença de Deus e foi habitar na terra de Node, ao Oriente”
[6]

Outra história seria que ao se recusarem a dar abrigo a sagrada família em Belém, ao nascimento de Jesus, teriam sido castigados a vagar pelo mundo sem um lar fixo, outra que os ciganos teriam incentivado Judas a trair Cristo. Estas narrações fantasiosas nos esclarecem a forma usada para condenar e perseguir os ciganos, relatos que os não ciganos acreditavam profundamente e que usavam como argumento para repudiar um povo que teria segundo lendas, prejudicado a Jesus Cristo, imagine como estes falsos relatos formavam-se nas cabeças dos não ciganos, levando-os ao preconceito e repugnância dos mesmos e que horrores aconteceram por isso.
Há outra lenda que diz que uma cigana teria roubado o prego que seria fisgado no coração do Cristo em seu martírio (este cravo, ou prego que teria sido forjado pelos próprios ciganos) ela o fez por não mais agüentar ver o sofrimento de Jesus, daí a lenda que todos os ciganos poderiam possuir o que quisessem sem esforço, para os ciganos não seria pecado.
Com a dispersão dos ciganos para o resto do mundo, necessitaram de criar mecanismos para a sua sobrevivência, entre eles a esperteza e a omissão de seus costumes e de sua língua, o choque cultural era por demais entre os não ciganos e ciganos.
“Por aquilo que é imundo de natureza, não podes alimentar esperança; não há lavagem que torne o cigano branco”
[7]


Suas kumpanias, melhor caravanas, seguiam pela “Longa Estrada” homens á frente mulheres e crianças pelas estradas da vida, um caminho sem parada, sem destino, em suas caravanas não há solidão, pois os ciganos odeiam a solidão, deixavam seus contatos nas estradas á caravanas ciganas que por ali depois passassem, eram avisos deixados em tiras de panos, talhe de ossos, gravetos quebrados e amarrados de forma especial, daí a desconfiança de camponeses achando-se tratar de feitiços, de sementes do mal, do diabo, o que ajudou a formular a idéia de feiticeiros.
Os ciganos gostam da verdade que chamam de Caçimos ou Tchimos, não sonham com uma terra natal, pois na grande estrada Deus lhes deu o mundo, quando querem dizem grandes verdades.
O choque cultural fora demasiadamente forte no momento em que adentram a Europa, os ciganos enfrentam seu martírio e sua sina.
Ser cigano é também saber enfrentar os obstáculos de cabeça erguida e com uma postura de vitória e sobrevivência em cima de opressões, e esta força que faz este povo permanecer vivo, insistindo em sua preservação em pleno capitalismo desenfreado do qual vivemos, e se adaptar sem perder as tradições e suas raízes culturais e ancestrais, fiéis em seus ideais e seus costumes, é vencer o tempo, é permanecer igual como antes mesmo estando nos dias atuais.
Neste trabalho observaremos o trajeto dos ciganos de Portugal ao foco da cidade do Rio de Janeiro, realçando a participação do grupo Calon, na formação da cidade em sua participação a grandes momentos do Império, sua união e recepção com os brasileiros, sua fusão e assimilação em um continente chamado Novo Mundo, em seu clima tropical que desabrochariam os encantos e mistérios e superstições dos ciganos, de profissões de artistas á oficiais de Justiça, negociantes a bandeirantes, de ciganos ricos na corte a meirinhos, do Rio de Janeiro onde os ciganos se assentaram sobre brejos e mangues desvalorizados, o tempo da glória na corte brasileira mesmo sendo um criptocigano
[8]
Para entendermos melhor os ciganos devemos nos despir dos conceitos de etnocentrismo, moral, religiosos e tabus que nos são inseridos na sociedade, só assim poderá conhecer o cigano como realmente ele é, os verdadeiros ciganos que não mentem uns para os outros.

“A linguagem dos ciganos vem do coração, os quais vivem para o momento presente, enquanto para os não ciganos, a linguagem desempenha uma função mais cerebral ”
[9]

Assim são Yul Bryner, Charlie Chaplin, Rita Haworth, Gypsy Kings, Dedé Santana, Carequinha Jorge Sedala Gomes, Zurca Sbano, Wagner Tiso, Ana Rosa, Joaquim Cortez, JK, Castro Alves, Íon Voicu, Gyogy Csffra, Aladar Rasz, Carmem Maya, Django Reinhardt, Gitanillo de Triana, Mio Vacite e tantos outros, são os ciganos e seus “descendentes”, que se orgulham de serem simplesmente ciganos.




[1] Cit Aristicth, 1995, p.84.
[2] Melo Morais Filho pioneiro dos estudos ciganos no Brasil, os estudos ciganos na Europa também acontecem tardiamente, o estudo da ciganologia hoje é uma ciência interdiciplinar.
[3] Cit. Borrow, George, pág 19.
[4] Fala de um engano praticado por um cigano, diálogo entre quatro ciganas.
[5] Cit. Borrow, Geoge, pág. 20.
[6] Cit. Bíblia Sagrada, Gênesis, cap. 4, vers. 11 e 14.
[7] Ferdusi, Cit. Borrow, Geoge, pág. 05.
[8] Cigano de origem, mas esconde sua ciganidade por medo de preconceito, por posições sociais e cargos elevados sejam eles políticos ou artísticos.
[9] Referencias de Francisco Monteiro.

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